Sem apoio do governo brasileiro e da Guiné-Bissau, familiares de Milton Sanca fazem campanha online para arrecadar valor para traslado do corpo

por Leandro Barbosa, via Agência Pública


O guineense Adilson Victor de Oliveira, 34 anos, é um homem impossibilitado de vivenciar o seu luto. Desde que seu irmão Milton Sanca, 39 anos, morreu vítima de um acidente vascular cerebral (AVC), em 25 de abril de 2022, em Fortaleza (CE), ele busca uma forma de levar o corpo do familiar de volta à Guiné-Bissau, país na África Ocidental, a fim de realizar os rituais fúnebres necessários de acordo com a crença da etnia brame ou macanha, da qual fazem parte. Contudo, os custos para isso são de aproximadamente R$ 40 mil — valor que a família não possui e que impede o “descanso” de Sanca.

Milton chegou ao Brasil em agosto de 2019. A intenção do guineense, com ofício de pedreiro, era seguir trabalhando por aqui a fim de ajudar a esposa e os quatro filhos, com idades entre 6 e 18 anos, que permaneceram na Guiné-Bissau. Seu sonho era estudar engenharia civil e ver a filha mais velha seguindo os passos do tio, Adilson, na Universidade Federal do Ceará (UFC). Contudo, seus planos de estudar foram adiados devido à pandemia, mas Milton conseguiu continuar trabalhando como pedreiro até o final de 2021. Em janeiro deste ano, o imigrante conquistou o seu primeiro trabalho de carteira assinada, como motorista de uma empresa em Fortaleza. Primogênito da família, ele também tinha a responsabilidade de cuidar dos pais e do irmão e teve forte participação na formação de Adilson.

Milton Sanca deixou quatro filhos e esposa em seu país de origem. Foto: Arquivo pessoal


“Meu irmão, a morte não é o fim. Eu sei que você tá aí. Você sempre me ajudou. Me ajuda a te levar de volta pra casa”, diz Adilson, olhando para o alto, em um hiato em meio a entrevista concedida à Agência Pública, na UFC, onde ele faz doutorado em história. E, então, explica: “Para a nossa etnia [brame ou macanha], o corpo do Milton não representa só o corpo de alguém falecido. Tem um significado. Enterrar a pessoa fora do país dela é muito difícil. Os filhos vão carregar isso até o último dia da vida deles. É um trauma muito grande. O que a gente quer é dar uma esperança para os filhos do Milton, de que o pai deles vai voltar”. 

Adilson conta que o rito é uma cerimônia feita pela família antes do funeral e que, caso não seja realizada, pode haver consequências físicas ou espirituais. “É importante que o corpo passe por todos os rituais para assim evitar futuras consequências para os filhos de Milton e para nossa família. Ao mesmo tempo, a família e amigos terão a oportunidade de se despedir do pai, irmão e amigo que ele foi e é”, afirma. 

Adilson, irmão de Milton, está impossibilitado de vivenciar o seu luto. Foto: Leandro Barbosa/Agência Pública


Adilson explica que, segundo a crença brame ou macanha, se esses rituais não forem feitos corretamente, “alguém da família pode falecer ou toda a casa ser acometida por azares”. Devido a isso, desde o dia de sua morte, o corpo de Milton continua sendo preservado enquanto a família busca recursos para levá-lo para casa. O corpo passou mais de 20 dias no Hospital Geral de Fortaleza e agora aguarda o desfecho da história em uma funerária. 

Tentando voltar para casa
Adilson e seu tio, Carlos Zacarias Joaquim Júnior, que também está no Brasil fazendo doutorado, iniciaram um financiamento coletivo por meio do Pix badilesanca100@gmail.com, em uma conta do NuBank em nome do Adilson, para arcar com os custos do traslado. Contudo, em meio à campanha, Carlos passou a receber mensagens racistas em seu WhatsApp. Por meio de um número de DDD 81, de Pernambuco, uma pessoa ainda não identificada o chamou de macaco e disse que os africanos não são bem-vindos no Brasil. “Que bom que aquele macaco morreu. Vocês estão infestando o nosso país e a nossa cidade. Saiam daqui!”, diz uma das mensagens. A pessoa afirmou ainda que os imigrantes estavam roubando o emprego dos brasileiros e transmitindo HIV às mulheres do país. 

Número desconhecido encaminhou mensagens racistas ao tio de Milton, Carlos Zacarias. Foto: Reprodução.
Número desconhecido encaminhou mensagens racistas ao tio de Milton, Carlos Zacarias. Foto: Reprodução.


“Eu fui fazer um BO [Boletim de Ocorrência] na Polícia Civil. Registraram como injúria racial. A gente sofre racismo toda hora. Acontece que a gente não divulga sempre. Mas desta vez resolvi falar, porque eu acredito que uma pessoa que manda uma mensagem dessa, em um momento como esse, tem coragem de matar alguém”, diz Carlos. “Eu fiquei com medo de um dia ser atacado. Isso mexe com a gente, sem dúvida. Mas eu preciso ser forte, porque agora preciso pensar nesta situação do Milton, no meu doutorado, em tudo o que está acontecendo na minha vida agora”, conclui. 

Fonte: https://apublica.org/2022/05/familia-sofre-racismo-e-tentativa-de-golpe-ao-tentar-repatriar-imigrante-morto-no-brasil/